24.11.05

15.6.04
Um Cruzamento


Tenho um animal singular, metade gatinho, metade cordeiro. Herdei-o com uma das propriedades de meu pai. Contudo, apenas se desenvolveu ao meu tempo, pois anteriormente possuía mais de cordeiro que de gatinho. Agora participa das duas naturezas igualmente. Do gato, a cabeça e as unhas; do cordeiro, o tamanho e a figura; de ambos, os olhos, selvagens e acesos; o pêlo, suave e bem assentado; os movimentos, já saltitantes, já lânguidos. Ao sol, sobre o parapeito da janela, faz-se uma bola e ronroneia. No prado corre como enlouquecido e mal se pode alcançá-lo. Foge dos gatos e pretende atacar os cordeiros. Em noites de lua são as telhas o seu caminho preferido. Não pode miar e tem repugnância pelos ratos. É capaz de passar horas inteiras à espreita diante do galinheiro, mas até agora não aproveitou nunca a ocasião de matar.


Alimento-o com leite doce; é o que melhor lhe assenta. Bebe-o sorvendo-o a longos tragos por entre seus dentes ferozes. Naturalmente, é um espetáculo completo para as crianças. No domingo pela manhã é hora de visitas. Ponho o animalzinho sobre os meus joelhos e as crianças de toda a vizinhança detêm-se ao meu redor.


Então são formuladas as perguntas mais maravilhosas, essas que nenhum ser humano pode responder: por que existe apenas um animal como este, por que eu o tenho, exatamente eu, se antes dele existiu outro animal assim e como será depois de morto, se se sente muito só, por que não dá cria, como se chama, etc.


Não me dou ao trabalho de responder, e contento-me em mostrar, sem mais explicações, aquilo que possuo. Às vêzes, as crianças vêm com gatos e uma vez, até trouxeram dois cordeiros. Mas contrariamente às suas esperanças, não se produziram cenas de reconhecimento. Os animais olhavam-se tranquilamente com olhos animais e consideraram, sem dúvida, reciprocamente, sua existência como uma obra divina.


Sobre os meus joelhos, este animal não conhece nem o medo nem desejos de perseguir ninguém. Acocorado contra mim é como se sente melhor. Está apegado à família que o criou. Isto não pode ser considerado, por certo, como uma demonstração de fidelidade extraordinária, porém como o reto instinto de um animal que na terra tem inumeráveis parentes políticos, mas talvez nem um só consanguíneo, e para o qual, por isso, lhe parece sagrada a proteção que encontrou entre nós.


Às vezes me faz rir quando me fareja, desliza-se por entre minhas pernas, e não há modo de afastá-lo de mim. Não satisfeito em ser gato e cordeiro, quer ser quase cachorro. Aconteceu uma vez que, como pode ocorrer a qualquer um, não encontrava solução para meus problemas de negócios e para tudo o que se relacionasse com eles, e pensava abandonar tudo; em tal estado de espírito enterrei-me na cadeira de palha, com o animal sobre os joelhos, e ao olhar para baixo percebi casualmente que dos longuíssimos pelos de sua barba gotejavam lágrimas. Eram minhas? Eram suas? Tinha também aquele gato com alma de cordeiro ambição humana? Não herdei grande coisa do meu pai, mas esta herança é digna de ser mostrada.


Tem ambas as inquietações em si, a do gato e a do cordeiro, por diversas que sejam uma e outra. Por isso a pele lhe é estreita. Às vezes salta sobre o assento, ao meu lado, apóia-se com as patas dianteiras em meu ombro e põe o focinho junto ao meu ouvido. É como se me dissesse algo e então se inclina para diante e olha-me cara a cara para observar a impressão que a comunicação me fêz. E para ser complacente com ele, faço como se tivesse compreendido algo e confirmo com a cabeça. Então salta ao solo e começa a bailar ao meu redor.


Talvez o facão de açougueiro fôsse uma libertação para este animal, mas como o recebi em herança devo evitar isso. Por isso terá de esperar que o alento lhe falte por si, apesar de que, às vezes, me olhe com olhos humanamente compreensivos que incitam a agir compreensivamente.



Tradução de Torrieri Guimarães.
 


16.3.04

30.1.04

1.10.03



A Partida



Dei ordem de irem buscar meu cavalo ao estábulo. O criado não me compreendeu. Fui eu mesmo ao estábulo, ensilhei o cavalo e montei. Ao longe ouvi o som de uma trombeta, perguntei o que significava aquilo. Ele de nada sabia, não ouvira nada.

No portão deteve-me, para perguntar-me:

- Para onde cavalga o senhor?

- Não o sei - respondi -. Apenas quero ir-me daqui, somente ir-me daqui. Partir sempre, sair daqui, apenas assim posso alcançar minha meta.

- Conheces então, tua meta? - perguntou ele.

- Sim - respondi eu -. Já disse. Sair daqui: esta é minha meta.



(tradução de Torrieri Guimarães)

Fonte: Porão Abaixo



20.8.03
A Metamorfose


Ilustrado por Peter Kuper

Não deixe de ver o filminho, uma síntese do livro de Kafka.



15.5.03

13.5.03



  • Uma licencinha pro Maupassant, Kafka...




  • Guy de Maupassant, "O medo" (1882)

    Tradução de Ana Cardoso Pires


     


    Subimos à coberta depois do jantar. Diante de nós, o Mediterrâneo não tinha um tremor em toda a superfície, que uma grande lua calma fazia brilhar. O grande navio deslizava, atirando para o céu, que parecia semeado de estrelas, uma enorme serpente de fumo negro; e, atrás de nós, a água muito branca, agitada pela passagem rápida da pesada embarcação, castigada pela hélice, espumava, parecia torcer-se e revolvia tantos brilhos que se diria a luz da lua em ebulição.
    Estávamos ali uns seis ou oito, silenciosos, em contemplação, de olhar voltado para a África longínqua a que nos dirigíamos. O comandante, que estava connosco fumando um charuto, retomou subitamente a conversa do jantar.
    - Sim, tive medo naquele dia. O meu navio ficou seis horas com aquele rochedo encravado no bojo, batido pelo mar. A nossa sorte foi sermos recolhidos, para o fim da tarde, por um carvoeiro inglês que nos avistou.
    Então, um homem alto, de rosto tisnado e aspecto grave, um daqueles homens que se percebe terem atravessado vastos territórios desconhecidos no meio de perigos incessantes, e cujo olhar tranquilo parece conservar, na sua profundeza, algo das paisagens estranhas que viu - um daqueles homens que adivinhamos forjados na coragem, falou pela primeira vez:
    - Está a dizer, comandante, que teve medo; não acredito nada nisso. Engana-se em relação à palavra e à sensação que experimentou. Um homem enérgico nunca tem medo diante do perigo premente. Fica impressionado, agitado, ansioso; mas o medo é outra coisa.
    O comandante replicou, rindo:
    - Caramba! Estou a dizer-lhe que tive mesmo medo.
    Então, o homem de tez bronzeada disse pausadamente:
    - Permita que me explique! O medo (e os homens mais intrépidos podem sentir medo) é algo assustador, uma sensação atroz, uma espécie de dilaceração da alma, um espasmo horroroso do raciocínio e do coração, cuja simples lembrança provoca calafrios angustiantes. Mas isso não acontece, quando se é corajoso, nem diante de um ataque, nem diante da morte inevitável, nem diante de qualquer das formas conhecidas de perigo; acontece em certas circunstâncias anormais, sob certas influências misteriosas e perante riscos vagos. O verdadeiro medo é como uma reminiscência dos terrores fantásticos de outrora. Um homem que acredita em almas penadas e que imagina estar a ver um espectro à noite deve sentir o medo em todo o seu insuportável horror.
    Pessoalmente, senti o medo em pleno dia, há cerca de dez anos. Tornei a senti-lo no Inverno passado, numa noite de Dezembro.
    E, no entanto, já passei por muitos perigos, por muitas aventuras que pareciam mortais. Entrei em muitas lutas. Fui deixado como morto por ladrões. Fui condenado à forca como insurrecto, na América, e fui atirado ao mar da ponte de um navio, nas costas da China. Sempre que me julguei perdido, assumi imediatamente a minha defesa, sem compaixão e sem lamentos sequer.
    Mas o medo não é isso.
    Pressenti-o em África. E no entanto, ele é filho do Norte; o sol dissipa-o como ao nevoeiro. Reparem bem, cavalheiros. Para os orientais, a vida não tem valor; a resignação é imediata; as noites são límpidas e sem lendas e as almas igualmente livres das inquietações sombrias que atormentam os cérebros nos países frios. No Oriente, podem conhecer o pânico, mas ignoram o medo.
    Pois bem: eis o que me aconteceu nessa terra de África:
    "Fazia a travessia das grandes dunas ao sul de Ouargla. É uma das mais estranhas regiões do mundo. Os senhores conhecem a areia compacta, a areia lisa das intermináveis praias do oceano. Pois bem: imaginem o próprio oceano transformado em areia no meio de uma borrasca; imaginem uma tempestade silenciosa com vagas imóveis feitas de poeira amarela. São altas como montanhas, essas vagas, desiguais, diferentes, erguidas exactamente como numa maré enraivecida, mas muito maiores, e estriadas como o chamalote. Sobre esse mar furioso, mudo e imóvel, o devorador sol meridional jorra a sua chama implacável e directa. É preciso escalar essas vagas de cinza de ouro, voltar a descer, escalar novamente, escalar sempre, sem descanso e sem sombra. Os cavalos arquejam do esforço, afundam-se até aos joelhos e deixam-se resvalar pela outra vertente das surpreendentes colinas.
    Éramos dois amigos, acompanhados por oito spahis e quatro camelos com os respectivos cameleiros. Já não falávamos, prostrados pelo calor e pela fadiga, ressequidos de sede como aquele deserto ardente. De súbito, um dos homens soltou uma espécie de grito; todos pararam; e ficámos imóveis, surpreendidos por um inexplicável fenómeno conhecido dos viajantes daquelas paragens perdidas.
    Algures perto de nós, numa direcção indeterminada, rufava um tambor, o misterioso tambor das dunas. Rufava distintamente, ora mais vibrante, ora mais fraco, parando e recomeçando o seu fantástico rufar.
    Os árabes, aterrorizados, olhavam uns para os outros; e um disse, na sua língua: 'A morte paira sobre nós'. E de repente, o meu companheiro, meu amigo, quase meu irmão, caiu do cavalo, de cabeça, fulminado por uma insolação.
    E durante duas horas, enquanto tentava em vão salvá-lo, aquele tambor invisível não cessou de me encher os ouvidos com o seu barulho monótono, intermitente e incompreensível; e eu sentia o medo, o verdadeiro medo, o medo horrendo, insinuar-se nos meus ossos, diante daquele morto querido, naquele buraco incendiado pelo sol, entre quatro montes de areia, enquanto o eco desconhecido nos lançava, a duzentas léguas de qualquer aldeia francesa, o rufar rápido do tambor.
    Naquele dia compreendi o que é ter medo; soube-o ainda melhor de outra vez..."
    O comandante interrompeu o narrador:
    - O senhor desculpe-me, mas esse tambor? O que era?
    O viajante respondeu:
    - Não faço ideia. Ninguém sabe. Os oficiais, frequentemente surpreendidos por esse ruído singular, atribuem-no geralmente ao eco ampliado, multiplicado, desmesuradamente aumentado pelos vales formados pelas dunas, gerado por saraivadas de grãos de areia carregados pelo vento e que esbarram em tufos de ervas secas. Porque sempre se observou que o fenómeno ocorre na proximidade de umas plantinhas queimadas do sol, duras como pergaminho.
    Esse tambor não seria, pois, senão uma espécie de miragem de som. Apenas isso. Mas só o soube mais tarde. Agora, a minha segunda emoção.
    "Foi no Inverno passado, numa floresta do nordeste da França. A noite tinha chegado duas horas mais cedo, de tal modo o céu estava escuro. Tinha como guia um camponês que caminhava a meu lado por um trilho ínfimo, sob uma abóbada de abetos, através dos quais o vento desabrido uivava. Por entre as copas, via passarem nuvens à desfilada, nuvens desvairadas que pareciam fugir de algo pavoroso. Por vezes, no meio de um estrondo violento, toda a floresta se inclinava na mesma direcção, com um gemido de dor; e o frio invadia-me, apesar do meu passo rápido e das minhas roupas pesadas.
    Íamos cear e dormir à casa de um guarda florestal, que já não estava longe. Eu estava ali para caçar.
    O meu guia, de vez em quando, erguia os olhos e murmurava: 'Que tempo desgraçado!' Depois falou-me das pessoas para casa de quem íamos. O pai tinha morto um caçador furtivo, dois anos antes, e, desde então, ficara taciturno, como que dominado por uma recordação. Os dois filhos, casados, viviam com ele.
    As trevas eram cerradas. Não via nada à minha frente nem à minha volta, e a ramagem das árvores que se entrechocavam enchia a noite de um murmúrio incessante. Por fim, avistei uma luz e em breve o meu companheiro estava a bater a uma porta. Gritos agudos de mulheres vieram em resposta. Depois, uma voz de homem, uma voz estrangulada, perguntou: 'Quem vem lá?' O meu guia identificou-se. Entrámos. Era um quadro inesquecível. Um velho de cabelos brancos, de olhar ensandecido, com a espingarda carregada na mão, esperava-nos de pé no meio da cozinha, enquanto dois mocetões, armados de machados, guardavam a porta. Divisei nos cantos sombrios duas mulheres ajoelhadas, de rosto escondido, virado para a parede.
    Explicámo-nos. O velho voltou a encostar a arma à parede e mandou preparar o meu quarto; depois, como as mulheres não se movessem, disse-me bruscamente: 'Sabe, senhor, matei um homem faz esta noite dois anos. No ano passado, ele apareceu a chamar-me. Espero-o ainda esta noite'.
    E acrescentou, num tom que me fez sorrir: 'Por isso, não nos sentimos em paz.'
    Tranquilizei-o como pude, feliz por ter vindo precisamente nessa noite e assim assistir ao espectáculo daquele terror supersticioso. Contei algumas histórias e consegui praticamente acalmar toda a gente.
    Junto à lareira, um velho cão, quase cego e de grandes bigodes, um daqueles cães que se parecem com pessoas nossas conhecidas, dormia com o focinho entre as patas.
    Lá fora, a tempestade enfurecida abatia-se sobre a casita e, por uma vidraça estreita, uma espécie de postigo junto à porta, vi de repente uma grande agitação de árvores açoitadas pelo vento, iluminadas por grandes relâmpagos.
    Apesar dos meus esforços, percebia que um terror profundo dominava aquelas pessoas e, sempre que parava de falar, todos os ouvidos se fixavam ao longe. Cansado de assistir a tais medos imbecis, ia pedir para me deitar quando, de repente, o velho guarda saltou da cadeira, voltou a pegar na espingarda, balbuciando numa voz desnorteada: 'Ele está aqui! Ele está aqui! Estou a ouvi-lo!'
    As duas mulheres tornaram a cair de joelhos nos seus cantos, escondendo o rosto; e os filhos voltaram a pegar nos machados. Ia tentar acalmá-los de novo, quando o cão adormecido despertou bruscamente, levantou a cabeça, esticou o pescoço, fitou o fogo com o seu olhar quase cego, e soltou um daqueles uivos lúgubres que sobressaltam os viajantes, à noitinha, nos campos. Todos os olhos se voltaram para ele, agora imóvel, direito sobre as patas, como dominado por uma visão; e voltou a uivar na direcção de qualquer coisa invisível, desconhecida, medonha sem dúvida, pois o pêlo eriçou-se todo.
    O guarda, lívido, gritou: 'Ele está a senti-lo! Ele está a senti-lo! Ele estava lá quando eu o matei'. E as duas mulheres, desnorteadas, puseram-se ambas a uivar com o cão.
    Involuntariamente, um grande arrepio percorreu-me a espinha. Aquela visão do animal, naquele lugar, àquela hora, no meio daquela gente alucinada, era um espectáculo aterrador.
    E durante uma hora, o cão uivou sem se mover; uivou como na angústia de um pesadelo; e o medo, um medo assombroso, apoderou-se de mim. Medo de quê? E eu sei? Era o medo, só isso.
    Permanecemos imóveis, lívidos, na expectativa de um acontecimento pavoroso, de ouvido à escuta, coração aos pulos, sobressaltados pelo mínimo ruído. E o cão pôs-se a andar em torno da sala, farejando as paredes, sempre a ganir. Aquele animal estava a pôr-nos loucos! Então, o camponês que me tinha trazido até ali, atirou-se a ele, numa espécie de paroxismo de terror insano, e, abrindo uma porta que dava para um pequeno pátio, atirou-o lá para fora.
    O bicho calou-se imediatamente; e ficámos mergulhados num silêncio ainda mais aterrador. De súbito, todos à uma, tivemos uma espécie de sobressalto: um ser deslizava encostado à parede exterior, do lado da floresta; depois, passou pela porta, que pareceu tactear com uma mão hesitante; depois não se ouviu mais nada durante dois minutos que nos fizeram enlouquecer; depois voltou, sempre a roçar na parede; e raspou ligeiramente, como faria uma criança com a unha; depois, subitamente, surgiu uma cabeça no vidro do postigo, uma cabeça branca, com olhos luminosos como os das feras. E a boca emitiu um som, um som indistinto, um murmúrio lamentoso.
    Então, um estrondo enorme ressoou na cozinha. O velho guarda tinha disparado. E imediatamente, os filhos precipitaram-se a bloquear o postigo, pondo ao alto a enorme mesa, que sustiveram arrimando-lhe o aparador.
    E juro-vos que, ao ouvir o estampido do tiro, que não esperava de todo, senti uma tal angústia no coração, na alma e no corpo, que me senti desfalecer, prestes a morrer de medo.
    Ficámos ali até à chegada da aurora, incapazes de nos mexermos, de dizermos uma palavra, crispados num pânico inenarrável.
    Ninguém ousou desobstruir a saída até apercebermos, pela fenda de um telheiro, um ténue raio de dia.
    Junto à parede, contra a porta, jazia o velho cão, de garganta despedaçada por uma bala.
    Saíra do pátio através de um buraco que tinha cavado por debaixo de uma cerca."
    O homem de rosto moreno calou-se; depois acrescentou:
    - E no entanto, naquela noite, não corri perigo nenhum; mas preferia reviver todas as horas em que enfrentei os mais terríveis perigos do que aquele único minuto do tiro, na cabeça barbada ao postigo.


  • (23 de Outubro de 1882)





  • 12.5.03



    "Um Artista da Fome"

  • Tradução de Maria Vieira Mendes

  •  


    O interesse por artistas da fome diminuiu muito nas últimas décadas. Se antigamente a organização por conta própria deste tipo de espectáculos trazia o seu lucro, hoje em dia isso seria absolutamente impossível. Os tempos eram outros. Na altura toda a cidade seguia o artista da fome; a cada dia do seu jejum aumentava a afluência; todos queriam ver o artista da fome ao menos uma vez por dia; nos últimos dias inscreviam-se pessoas para poderem ficar sentadas o dia inteiro em frente à pequena jaula; até durante a noite, à luz de archotes que aumentavam o efeito, apareciam visitantes; em dias de sol trazia-se a jaula para o exterior para que o artista da fome fosse mostrado às crianças; se para os adultos o espectáculo não passava de um divertimento no qual participavam porque estava na moda, as crianças, por seu lado, estarrecidas, as bocas abertas, segurando as mãos umas das outras para se sentirem mais seguras, as crianças observavam a palidez do artista da fome, observavam o maillot preto por trás da qual sobressaíam poderosas as suas costelas, observavam-no sentado na palha, visto que rejeitava qualquer cadeira, a acenar de tempos a tempos por cortesia, viam-no responder a perguntas com um sorriso forçado, a esticar o braço para que lhe pudessem sentir a magreza, mas logo se afundando em si próprio, porque todos lhe eram indiferentes, até mesmo o bater, para ele tão importante, do relógio, única mobília da jaula, limitava-se a olhar em frente, de olhos quase fechados e a bebericar aqui e ali de um minúsculo copito de água para humedecer os lábios.

    Além dos diferentes espectadores que iam passando, havia também uns guardas permanentes, normalmente e curiosamente talhantes de profissão, que eram escolhidos pelo público e que tinham por função vigiar o artista da fome dia e noite, e sempre três de cada vez, para que ele não pudesse de maneira nenhuma ingerir qualquer alimento. Isto não passava porém de uma formalidade introduzida para satisfação das massas, dado que os verdadeiros aficionados sabiam perfeitamente que durante o período de jejum o artista da fome nunca, sob quaisquer circunstâncias, nem sequer se a tal fosse forçado, comeria a mais pequena migalha; proibia-o a honra da sua arte. Claro que nem todos os guardas eram capazes de o compreender, havia grupos de vigia nocturna que executavam o seu trabalho de forma desleixada, sentavam-se a jogar às cartas num canto propositadamente afastado com o objectivo de conceder ao artista da fome um pouco de descanso que, pensavam eles, seria por ele utilizado para sacar de umas provisões secretas. Este era o tipo de guardas que mais torturava o artista da fome; entristeciam-no; ficava-lhe muito mais difícil jejuar; por vezes suplantava a sua debilidade e cantava durante todo o tempo que durava a vigília, cantava até não mais poder para mostrar às pessoas como eram injustas as suas suspeitas. Mas isto de pouco lhe servia; os guardas ficavam apenas impressionados com a habilidade do artista da fome que era capaz de comer enquanto cantava. Gostava muito mais daqueles guardas que se sentavam bem junto às grades, e que, não satisfeitos com a sombria luz nocturna da sala, o iluminavam com lanternas eléctricas postas à sua disposição pelo empresário. A forte luz não o incomodava, fosse como fosse não dormia e de qualquer das formas era sempre capaz de dormitar sob qualquer iluminação e a qualquer hora, mesmo numa sala sobrelotada e barulhenta. Estava disposto a passar a noite acordado com esses guardas; estava disposto a divertir-se com eles, a contar-lhes histórias da sua vida nómada e a ouvir também as histórias deles, tudo isso para os manter acordados, para lhes poder mostrar que não guardava nada de comestível dentro da gaiola e que jejuava como nenhum deles era capaz. O maior momento de felicidade chegava contudo com a manhã e com um pequeno-almoço cujo custo era suportado pelo próprio artista da fome e ao qual os guardas se atiravam com o apetite de homens saudáveis após uma longa noite de vigília. Havia apesar de tudo quem quisesse ver neste pequeno-almoço uma tentativa corrupta de subornar os guardas, mas isso já era ir longe demais, e quando lhes perguntavam se, em nome da causa, eram capazes de fazer a vigia da noite sem pequeno-almoço, esquivavam-se na resposta, mantendo porém teimosamente as suas suspeitas.

    Esta era aliás uma das várias suspeitas indissociáveis do jejum. Ninguém, por exemplo, era capaz de passar todas as noites e todos os dias a vigiar ininterruptamente o artista da fome e, assim sendo, ninguém podia confirmar com os seus próprios olhos se de facto se tinha jejuado ininterruptamente e sem falhas; apenas o artista da fome o podia confirmar, era ele portanto o único espectador capaz de se satisfazer plenamente com o seu jejum. Contudo, e por uma razão diferente, o artista da fome nunca ficava satisfeito; talvez não tivesse emagrecido por causa do jejum - tanto que havia quem, para seu próprio desconsolo, fosse incapaz de assistir ao espectáculo por não suportar tal visão - mas por causa da insatisfação que sentia consigo mesmo. De facto, só ele sabia, e nem os mais aficionados o sabiam, como era fácil jejuar. Era a coisa mais fácil do mundo. Não o escondia, mas ninguém acreditava, acusavam-no de estar a ser modesto ou, a maior parte das vezes, de querer chamar a atenção ou até mesmo de ser um aldrabão para quem jejuar era fácil porque encontrara uma maneira fácil de o fazer, um aldrabão que tinha ainda por cima o descaramento de quase o admitir. A tudo isto tinha que se sujeitar e com o passar dos anos acabara mesmo por se habituar, mas esta insatisfação corroía-o por dentro e jamais depois dum período de jejum - e esta verdade tinha que lhe ser concedida -, jamais deixara a jaula de livre vontade. O empresário fixara o tempo máximo de jejum em quarenta dias, após os quais sempre o proibira de jejuar, mesmo nas grandes metrópoles, e isto por uma boa razão. É que durante quarenta dias, e com uma intensificação progressiva da publicidade, conseguia-se normalmente manter o interesse de uma cidade, mas a partir daí o público recuava e a afluência decaía; é claro que havia pequenas diferenças entre as várias cidades e países mas a regra aplicada era a do limite de quarenta dias. Ao quadragésimo dia era então aberta a porta da jaula decorada com flores, uma multidão entusiasmada enchia o anfiteatro, tocava uma banda militar, dois médicos entravam na jaula para tomar as necessárias medidas ao artista da fome, o resultado era anunciado a toda a sala por um megafone e aproximavam-se duas jovens senhoras, todas felizes por terem sido elas as eleitas, e tentavam conduzir o artista da fome para fora da jaula e descer com ele uns degraus até uma mesa onde o esperava uma refeição cuidadosamente seleccionada. E nesta altura o artista da fome protestava sempre. Ainda apoiava de livre vontade os seus braços esqueléticos nas mãos que as senhoras debruçadas lhe estendiam prestavelmente, mas recusava-se a levantar. Porque é que tinha que acabar agora que quarenta dias haviam já passado? Era capaz de aguentar muito mais, aguentava infinitamente; porquê acabar no melhor momento, ou antes mesmo de atingir o melhor momento de jejum? Porque é que o privavam da glória de poder continuar a jejuar, de ser não só o maior artista da fome de todos os tempos, que provavelmente já era, mas de se superar a si próprio, até ao inconcebível, dado que não encontrava limites para a sua capacidade de jejum. Porque é que esta gente que dizia tanto o admirar, porque tinham eles tão pouca paciência; se ele era capaz de suportar o prolongamento do jejum, porque não eram eles também capazes de o fazer? Além disso estava cansado, estava confortavelmente sentado na palha e obrigavam-no a levantar-se e a aproximar-se da comida que só de imaginá-la lhe subiam os vómitos que com esforço continha por respeito para com as senhoras. E olhava para cima, olhava para os olhos das senhoras aparentemente amáveis mas na verdade cruéis e abanava a cabeça demasiado pesada para o fraco pescoço que a sustentava. Acontecia então o que sempre acontecia. O empresário aproximava-se, levantava silencioso - a música não permitia qualquer discurso - os braços por trás do artista da fome como se convidasse o céu a observar a sua obra aqui sentada no meio da palha, este mártir lamentável que o artista da fome era de facto mas num sentido completamente diferente; agarrava o artista da fome pela cintura fina e exagerando o cuidado com que o fazia tentava criar a ilusão de que segurava um objecto altamente delicado; e entregava-o - isto depois de o sacudir um pouco sem que o público o notasse, fazendo com que as pernas e o tronco do artista da fome baloiçassem para um lado e para o outro - às senhoras que entretanto tinham ganho uma palidez de defuntas. Nesta altura o artista da fome já a tudo se submetia; deixara cair a cabeça sobre o peito e era como se se tivesse enrolado sobre si próprio e assim se mantivesse inexplicavelmente; o corpo escavado; as pernas, apertadas uma contra a outra ao nível dos joelhos em instinto de conservação, raspavam o chão como se aquele não fosse o chão verdadeiro, como se ainda procurassem o verdadeiro chão; e todo o peso, peso por sinal levíssimo, do seu corpo repousava sobre uma das senhoras que, à procura de ajuda, a respiração ofegante - não fora assim que imaginara o cargo honorário - começava por endireitar o pescoço o mais possível para evitar que pelo menos o seu rosto tocasse no do artista da fome, mas depois, sentindo que a experiência falhava e que a sua colega, mais feliz, em lugar de a ajudar, se limitava a segurar a medo a mão do artista da fome, esse pequeno embrulho de ossos, a senhora rompia em lágrimas que escorriam sob as gargalhadas entusiastas da sala até que um funcionário, já há muito preparado para o efeito, dali a levava. Vinha então a comida que o empresário enfiava na boca do artista da fome adormecido numa espécie de sono que mais parecia um desmaio; e ao mesmo tempo que o alimentava, o empresário falava animadamente esforçando-se por desviar a atenção do público do estado em que o artista da fome se encontrava; pedia-se depois ao público um brinde, pedido que teria sido supostamente sussurrado pelo artista da fome ao ouvido do empresário; a orquestra reforçava tudo isto com uma grande fanfarra, as pessoas dispersavam e ninguém tinha o direito de se considerar descontente com aquilo a que acabara de assistir, ninguém, tirando o artista da fome, sempre e apenas ele.

    Assim viveu durante muitos anos com pequenas pausas regulares para recuperação, numa aparente glória, admirado pelo mundo mas apesar de tudo quase sempre triste, uma tristeza que crescia por ninguém por ela mostrar qualquer consideração. Mas como é que o podiam consolar? Que mais podia ele desejar? E se por acaso aparecesse uma pessoa de bom coração que o lamentasse e que quisesse explicar-lhe que a sua tristeza provinha muito provavelmente do jejum, podia acontecer, sobretudo quando o jejum ia mais adiantado, que o artista da fome respondesse com um ataque de fúria e que, para susto de todos, começasse a sacudir as grades da jaula como um animal. Para este tipo de situações o empresário dispunha de um castigo de que gostava de fazer uso. Desculpava o artista da fome diante da audiência, admitia que a irritabilidade do artista da fome só poderia ser perdoada por aqueles que em tempos tivessem jejuado, pois para homens bem alimentados ela era incompreensível; referia-se, a propósito, àquela afirmação do artista da fome igualmente incompreensível de que seria capaz de jejuar por muito mais tempo; elogiava a forte ambição, a boa vontade e a grande capacidade de abnegação contidas em tal afirmação; procurava todavia logo de seguida refutar a afirmação mostrando fotografias que na altura vendia e onde se via o artista da fome a um quadragésimo dia de jejum deitado numa cama, quase apagado de tão enfraquecido. Esta distorção da verdade, que o artista da fome tão bem conhecia mas que de cada vez que era proferida tanto o enervava, era um castigo demasiado pesado para ele. A consequência de um jejum interrompido antes de tempo era apresentada como a causa da sua interrupção! Era impossível lutar contra esta incompreensão, contra este mundo de incompreensão. Agarrado às grades, ansioso, esforçava-se de boa fé por ouvir as palavras do empresário, mas quando apareciam as fotografias largava de imediato as grades, afundava-se na palha suspirando e o público, já sossegado, podia voltar a aproximar-se e a observá-lo.

    As testemunhas destas cenas, quando se punham a recordá-las uns anos mais tarde, encontravam muitas vezes dificuldade em se compreender a si próprias. Isto porque entretanto se deu aquela reviravolta já referida; quase de um dia para o outro; poderiam encontrar-se causas mais profundas, mas quem é que estava interessado em as procurar; certo dia, e isto é o que interessa, o artista da fome mimado viu-se abandonado pela multidão que antes o procurava e que agora visitava outros espectáculos. O empresário arrastou-o mais uma vez por meia Europa na esperança de aqui ou ali ainda encontrar o velho interesse; em vão; como se de um secreto acordo se tratasse, desenvolvera-se uma repulsa geral contra a exposição do jejum. É claro que tal fenómeno não aconteceu de um momento para o outro e que agora, retrospectivamente, as pessoas se lembravam de alguns acontecimentos aos quais na altura não fora dada a devida atenção, indícios que não foram devidamente suprimidos, mas de qualquer das formas já era demasiado tarde para os tentar combater. Havia a certeza de que o jejum voltaria a estar na moda, mas para os que estavam vivos este consolo não servia. O que devia então fazer o artista da fome? Aquele que fora aclamado por milhares de pessoas não se podia agora contentar com umas barracas em pequenas feiras de aldeia, além de que não só era demasiado velho como sobretudo demasiado fanático do jejum para se dedicar a uma outra profissão. Despediu-se assim do empresário, companheiro de um percurso de vida incomparável, e deixou-se contratar por um grande circo; para não ferir a sua sensibilidade, não leu sequer o contrato.

    Um circo grande, com um sem número de pessoas e animais e aparatos que se equilibram e completam, pode sempre vir a precisar do que quer que seja que lhe apareça, até mesmo de um artista da fome, desde que as suas exigências sejam modestas, claro está, e para mais contratava-se neste caso, não apenas o artista da fome, mas também o seu velho e conceituado nome, e não se podia sequer afirmar que se tratava, sendo esta uma arte cuja qualidade não era prejudicada pelo avanço da idade, de um artista esgotado, um artista longe do ponto alto das suas capacidades a pretender terminar os seus dias no sossego de um circo, antes pelo contrário, o artista da fome assegurava ser capaz, o que era credível, de jejuar tão bem quanto antes, afirmava inclusivamente que se o deixassem fazer conforme queria, o que lhe prometeram sem reservas, agora sim espantaria finalmente o mundo, uma afirmação que aliás provocou como reacção um sorriso entre os colegas de profissão, visto ignorar a realidade do momento que se vivia e que o artista da fome com o entusiasmo facilmente esquecia.

    Mas o artista da fome não tinha perdido por completo a noção das proporções e aceitou com naturalidade o facto de não ser colocado no meio da arena com a sua jaula como atracção principal, mas sim no exterior, junto aos estábulos, num local de passagem de resto bastante concorrido. Para informação do público tinham sido colocados grandes letreiros coloridos à volta da jaula. Quando o público se dirigia aos estábulos para visitar os animais nos intervalos do espectáculo, era quase inevitável que passasse pelo artista da fome e que parasse um pouco à sua frente, e mais tempo ficaria não fosse a pressão, no estreito corredor, daqueles que, na ânsia de chegar aos estábulos e sem compreenderem porque se parava a meio do caminho, impossibilitavam uma observação mais longa e sossegada. E era por isso que o artista da fome, que começava por desejar aquelas horas de visita que davam sentido à sua vida, passava depois a temê-las. A princípio suportava com dificuldade a espera pelos intervalos do espectáculo; observava deliciado a multidão que se acotovelava ao aproximar-se até se convencer - mesmo o mais obstinado e quase consciente esforço para iludir as evidências acabava por ser incapaz de contrariar os factos - de que a maior parte das vezes o objectivo daquela multidão que por ele passava, quase sempre, sem excepções, era visitar os estábulos. E vê-los ao longe sempre foi o momento mais bonito. Quando a multidão se aproximava, ensurdeciam-no os gritos e as discussões dos dois grupos que se acumulavam constantemente à sua frente, o primeiro - e este viria a ser aquele que o artista da fome mais detestava - que o queria observar confortavelmente, não porque o compreendesse, mas por capricho e teimosia, e o segundo que queria apenas visitar os estábulos. Depois da grande multidão, aproximavam-se uns quantos retardatários e estes, apesar de não estarem impedidos de parar em frente à jaula quanto tempo lhes apetecesse, passavam rapidamente, a passos largos, quase sem olhar, para chegarem a tempo de ver os animais. Era raro o feliz acontecimento de um pai que aparecia com os seus filhos, que apontava com o dedo para o artista da fome e explicava detalhadamente do que se tratava, contava de tempos antigos em que ele assistira a espectáculos semelhantes embora de muito maiores dimensões, e as crianças, que, devido à insuficiente preparação das escolas e da própria vida que levavam, continuavam a pouco perceber do que viam - o que era para eles jejuar? - deixavam porém adivinhar no brilho dos seus olhos curiosos qualquer coisa de novo, de melhores tempos que se aproximavam. Talvez, dizia então às vezes o artista da fome para si próprio, talvez tudo melhorasse se a sua jaula não estivesse tão perto dos estábulos. Esta localização tornava a escolha do público demasiado fácil, já para não falar do que sofria com o fedor dos estábulos, o barulho dos animais durante a noite, o transporte da carne crua para as feras e os rugidos durante as refeições que constantemente o oprimiam. Mas não era capaz de apresentar queixa à direcção; além disso deveria estar grato aos animais pela quantidade de visitantes que tinha, entre os quais de quando em vez se encontrava um que a si estava destinado, e quem sabe onde o esconderiam se ele tentasse chamar a atenção para a sua existência, ele que no fundo era apenas um obstáculo no caminho para os estábulos.

    Ainda para mais um pequeno obstáculo, um obstáculo cada vez mais pequeno. As pessoas familiarizaram-se com a estranha ideia de, nos dias de hoje, se querer chamar a atenção do público para um artista da fome e esta familiarização foi o veredicto final. Podia jejuar quanto quisesse, e fazia-o, mas já nada o podia salvar, as pessoas não olhavam para ele. Tente-se explicar a arte do jejum! Não é possível explicá-la a quem não a sente. Os bonitos letreiros iam ficando sujos e ilegíveis, arrancaram-nos e ninguém se deu ao trabalho de os substituir; o pequeno quadro com o número dos dias de jejum, que em tempos antigos fora diariamente actualizado, já há muito marcava o mesmo número, visto que após as primeiras semanas até esta simples tarefa cansava os funcionários do circo; e apesar de tudo o artista da fome continuava a jejuar como em tempos sonhara, e fazia-o sem esforço como então havia afirmado, embora ninguém lhe contasse os dias, e assim ninguém, nem mesmo o próprio artista da fome, sabia a que ponto chegara a sua proeza, e o seu coração pesava cada vez mais. E quando, de tempos a tempos, um brincalhão qualquer parava em frente à jaula e troçava do número desactualizado no quadro e falava de fraude, dizia-se então a mentira mais estúpida que a indiferença e a maldade mais profunda poderiam inventar, porque o artista da fome não enganava ninguém, ele trabalhava honestamente, era o mundo que o enganava negando-lhe a sua recompensa.

    Muitos mais dias passaram e até isto teve o seu fim. Certo dia um fiscal reparou na jaula e perguntou aos assistentes porque é que se mantinha inutilizada e cheia de palha apodrecida uma jaula tão boa. Ninguém lhe soube responder até que um deles, vendo o quadro com os números, se lembrou do artista da fome. Revolveram a palha com umas forquilhas e encontraram o artista da fome. "Ainda estás a jejuar?" perguntou-lhe o fiscal, "quando é que vais acabar com isso?" "Perdoem-me todos", murmurou o artista da fome; apenas o fiscal de ouvido encostado às grades o conseguiu perceber. "Claro", disse o fiscal e apontou a testa com o dedo para ilustrar aos restantes funcionários o estado do artista da fome, "nós perdoamos-te." "Sempre quis que vocês admirassem o meu jejum", disse o artista da fome. "Nós admiramo-lo", disse o fiscal em tom conciliador. "Mas não deviam admirá-lo", disse o artista da fome. "Então não o admiramos", disse o fiscal, "mas porque é que não o devemos admirar?" "Porque eu tenho que jejuar, não posso fazer outra coisa", disse o artista da fome. "Olha-me este", disse o fiscal, "então porque é que não podes fazer outra coisa?" "Porque eu", disse o artista da fome, e para que nada se perdesse falou ao ouvido do fiscal com os lábios esticados, como se lhe fosse dar um beijo, "porque não encontrei alimento de que gostasse. Se o tivesse encontrado, acredita que não teria chamado tanto a atenção e que me teria empanturrado como tu e todos." Foram estas as suas últimas palavras, mas nos seus olhos desfeitos permanecia a convicção, já não orgulhosa mas ainda firme, de que continuava a jejuar.

    "Toca a arrumar isto!" disse o fiscal, e enterraram o artista da fome com a palha. Na jaula colocaram uma jovem pantera. Até os mais insensíveis podiam sentir a agradável recuperação que sofrera aquela jaula antes deserta e agora habitada por este animal selvagem que se mexia com vitalidade de um lado para o outro. Nada lhe faltava. Os guardas traziam-lhe sem grande hesitação as refeições de que o animal gostava; parecia que ele nem sequer sentia saudades da liberdade; aquele corpo nobre, de tal forma dotado que quase estoirava, parecia também trazer consigo a liberdade; parecia que ela se alojara algures nas suas mandíbulas. E a alegria de viver brotava com tal ardor das suas fauces que não era fácil para os espectadores suportá-la. Mas dominavam-se, rodeavam a jaula e não queriam por nada dali sair.



     


    23.9.02


    O Abutre




    Era um abutre que me dava grandes bicadas nos pés. Tinha já dilacerado sapatos e meias e penetrava-me a carne. De vez em quando, inquieto, esvoaçava à minha volta e depois regressava à faina. Passava por ali um senhor que observou a cena por momentos e me perguntou depois como eu podia suportar o abutre.
    - É que estou sem defesa - respondi - Ele veio e atacou-me. Claro que tentei lutar, estrangulá-lo mesmo, mas é muito forte, um bicho destes! Ia até saltar-me à cara, por isso preferi sacrificar os pés. Como vê, estão quase despedaçados.
    - Mas deixar-se torturar dessa maneira! - disse o senhor - Basta um tiro e pronto!
    - Acha que sim? - disse eu - Quer o senhor disparar o tiro?
    - Certamente - disse o senhor - É só ir a casa buscar a espingarda. Consegue aguentar meia hora?
    - Não sei lhe dizer. - respondi.
    Mas sentindo uma dor pavorosa, acrescentei:
    - De qualquer modo, vá, peço-lhe.
    - Bem - disse o senhor - Vou o mais depressa possivel.
    O abutre escutara tranquilamente a conversa, fitando-nos alternadamente. Vi então que ele percebera tudo. Elevou-se com um bater de asas e depois, empinando-se para tomar impulso, como um lançador de dardo, enfiou-me o bico pela boca até ao mais profundo do meu ser. Ao cair senti, com que alívio, que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu sangue.





    6.9.02



    O SILÊNCIO DA SEREIAS




    Prova de que até meios insuficientes - infantis mesmo podem servir à salvação:




    Para se defender da sereias, Ulisses tapou o ouvidos com cera e se fez amarrar ao mastro. Naturalmente - e desde sempre - todos os viajantes poderiam ter feito coisa semelhante, exceto aqueles a quem as sereias já atraíam à distância; mas era sabido no mundo inteiro que isso não podia ajudar em nada. O canto das sereias penetrava tudo e a paixão dos seduzidos teria rebentado mais que cadeias e mastro. Ulisses porém não pensou nisso, embora talvez tivesse ouvido coisas a esse respeito. Confiou plenamente no punhado de cera e no molho de correntes e, com alegria inocente, foi ao encontro das sereias levando seus pequenos recursos.

    As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu silêncio. Apesar de não ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha escapado ao seu canto; mas do seu silêncio certamente não. Contra o sentimento de ter vencido com as próprias forças e contra a altivez daí resultante - que tudo arrasta consigo - não há na terra o que resista.

    E de fato, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras não cantaram, seja porque julgavam que só o silêncio poderia conseguir alguma coisa desse adversário, seja porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses - que não pensava em outra coisa a não ser em cera e correntes - as fez esquecer de todo e qualquer canto.

    Ulisses no entanto - se é que se pode exprimir assim - não ouviu o seu silêncio, acreditou que elas cantavam e que só ele estava protegido contra o perigo de escutá-las. Por um instante, viu os movimentos dos pescoços, a respiração funda, os olhos cheios de lágrimas, as bocas semi-abertas, mas achou que tudo isso estava relacionado com as árias que soavam inaudíveis em torno dele. Logo, porém, tudo deslizou do seu olhar dirigido para a distância, as sereias literalmente desapareceram diante da sua determinação, e quando ele estava no ponto mais próximo delas, já não as levava em conta.

    Mas elas - mais belas do que nunca - esticaram o corpo e se contorceram, deixaram o cabelo horripilante voar livre no vento e distenderam as garras sobre os rochedos. Já não queriam seduzir, desejavam apenas capturar, o mais longamente possível, o brilho do grande par de olhos de Ulisses.

    Se as sereias tivessem consciência, teriam sido então aniquiladas. Mas permaneceram assim e só Ulisses escapou delas.

    De resto, chegou até nós mais um apêndice. Diz-se que Ulisses era tão astucioso, uma raposa tão ladina, que mesmo a deusa do destino não conseguia devassar seu íntimo. Talvez ele tivesse realmente percebido - embora isso não possa ser captado pela razão humana - que as sereias haviam silenciado e se opôs a elas e aos deuses usando como escudo o jogo de aparências acima descrito.






    ::Tradução de Modesto Carone::











    Sobre a questão das leis


    :



          Em geral as nossas leis não são conhecidas, senão que constituem um segredo do pequeno grupo de aristocratas que nos governa. Embora estejamos convencidos de que estas antigas leis são cumpridas com exatidão é extremamente mortificante ver-se regido por leis que não se conhecem. Não penso aqui nas diversas possibilidades de interpretação nem nas desvantagens que se derivam de que apenas algumas pessoas, e não todo o povo, possam participar da interpretação. Talvez estas desvantagens não sejam tão grandes. As leis são tão antigas que os séculos contribuíram para sua interpretação e esta interpretação já se tornou lei também, mas as liberdades possíveis a respeito da interpretação, mesmo que ainda subsistam, acham-se muito restringidas. Além do mais a nobreza não tem evidentemente nenhum motivo para deixar-se influir na interpretação por seu interesse pessoal em nosso prejuízo, já que as leis foram estabelecidas desde as suas origens por ela mesma; a qual se acha fora da lei, que, precisamente por isso, parece ter-se pôsto exclusivamente em suas mãos. Isto, naturalmente, encerra uma sabedoria - quem duvida da sabedoria das antigas leis -, mas ao mesmo tempo nos é mortificante, o que provavelmente é inevitável.


          Além do mais, estas aparências de leis apenas podem ser na realidade suspeitadas. Segundo a tradição existem e foram confiadas como segrêdo à nobreza, mas isto não é mais do que uma velha tradição, digna de crédito pela sua antiguidade, pois o caráter destas leis exigem também manter em segrêdo sua existência. Mas se nós, o povo, seguimos atentamente a conduta da nobreza desde os mais remotos tempos, e possuímos anotações de nossos antepassados referentes a isso, e as temos prosseguido conscienciosamente até acreditar discernir nos fatos inumeráveis certas linhas diretrizes que permitem concluir sobre esta ou aquela determinação histórica, e se depois destas deduções finais cuidadosamente peneiradas e ordenadas procuramos adaptar-nos de certo modo ao presente e ao futuro, tudo aparece então como incerto e talvez como simples jogo de inteligência, pois talvez essas leis que aqui procuramos decifrar não existam. Há um pequeno partido que sustenta realmente esta opinião e que procura provar que quando uma lei existe apenas pode rezar: o que a nobreza faz é a lei. Esse partido vê apenas atos arbitrários na atuação da nobreza e rechaça a tradição popular, a qual, seguindo o seu parecer, apenas comporta benefícios casuais e insignificantes, provocando em troca graves danos, ao dar ao povo uma segurança falsa, enganosa e superficial com respeito aos acontecimentos do futuro. Não pode negar-se este dano, mas a maioria esmagadora de nosso povo vê sua razão de ser no fato de que a tradição não é nem mesmo ainda suficiente, que portanto há ainda muito que investigar nela e que, sem dúvida, seu material, por enorme que pareça, é ainda demasiado pequeno, pelo que terão que transcorrer séculos antes de que se revele como suficiente. O obscuro nesta visão aos olhos do presente apenas está iluminado pela fé de que virá o tempo em que a tradição e sua investigação consequente ressurgirão de certo modo para pôr ponto final, que tudo será aclarado, que a lei apenas pertencerá ao povo e a nobreza terá desaparecido. Isto não é dito por ninguém e de modo algum com ódio contra a nobreza. Melhor, devemos odiar-nos a nós mesmos, por não sermos dignos ainda de ter lei. E por isso, esse partido, na realidade tão atraente sob certo ponto de vista e que não acredita, em verdade, em lei alguma, não aumentou as suas fileiras, e isso porque ele também reconhece a nobreza e o direito de sua existência.


          Em realidade, isto apenas pode ser expresso com uma espécie de contradição: um partido que, junto à crença nas leis, repudiasse a nobreza, teria imediatamente a todo o povo a seu lado, mas um partido semelhante não pode surgir porque ninguém se atreve a repudiar a nobreza. Sobre o fio deste cutelo vivemos. Um escritor resumiu isto certa vez da seguinte maneira: a única lei, visível e isenta de dúvida, que nos foi imposta, é a nobreza, e desta lei haveríamos de nos privar a nós mesmos?





    ::Tradução de Torrieri Guimarães







    28.8.02


    Comunidade





    Somos cinco amigos; uma vez saímos um atrás do outro de uma casa; primeiro veio um e pôs-se junto à entrada, depois veio, ou melhor dito, deslizou-se tão ligeiramente como se desliza uma bolinha de mercúrio, o segundo e se pôs não distante do primeiro, depois o terceiro, depois o quarto, depois o quinto.
    Finalmente, estávamos todos de pé, em uma linha. A gente fixou-se em nós e assinalando-nos, dizia: os cinco acabam de sair dessa casa. A partir dessa época vivemos juntos, e teríamos uma existência pacífica se um sexto não viesse sempre intrometer-se. Não nos faz nada, mas nos incomoda, o que já é bastante; porque se introduz por força ali onde não é querido? Não o conhecemos e não queremos aceitá-lo. Nós cinco tampouco nos conhecíamos antes e, se se quer, tampouco nos conhecemos agora, mas aquilo que entre nós cinco é possível e tolerado, não é nem possível nem tolerado com respeito àquele sexto. Além do mais somos cinco e não queremos ser seis. E que sentido, sobretudo, pode ter esta convivência permanente, se entre nós cinco tampouco tem sentido? Mas nós estamos já juntos e continuamos juntos, mas não queremos uma nova união, exatamente em razão de nossas experiências. Mas, como ensinar tudo isto ao sexto, pôsto que longas explicações implicariam já em uma aceitação de nosso círculo? É preferível não explicar nada e não o aceitar. Por muito que franza os lábios, afastamo-lo, empurrando-o com o cotovelo, mas por mais que o façamos, volta outra vez.




    Tradução de Torrieri Guimarães









    Fábula Curta






    "Ai de mim!", disse o rato, "o mundo vai ficando dia a dia mais estreito".

    "Outrora, tão grande era que ganhei medo e corri, corri até que finalmente fiquei contente por ver aparecerem muros de ambos os lados do horizonte, mas estes altos muros correm tão rapidamente um ao encontro do outro que eis-me já no fim do percurso, vendo ao fundo a ratoeira em que irei cair".

    "-Mas o que tens a fazer é mudar de direção", disse o gato, devorando-o.







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